Ex-voto da Ermida de Nossa Senhora de Aracelis — São Marcos da Ataboeira, Castro Verde

Por Maria João Ramos | Investigadora | 4 Abr 2024

A Ermida de Nossa Senhora de Aracelis situa-se no coração do Baixo Alentejo, perto da aldeia de São Marcos da Ataboeira, na linha de demarcação que separa os municípios de Castro Verde e de Mértola. Ainda hoje é alvo de disputa entre as populações destes concelhos, que a reclamam como sua. Localizada no cimo de uma colina que se ergue, solitária e imponente, na vasta planície circundante, oferece uma vista ímpar, de 360 graus, sobre a imensidão do Alentejo, da planície à serra, deixando vislumbrar ainda as regiões vizinhas do Algarve e da Andaluzia.

 

Trata-se de um edifício de linhas simples e de pequenas dimensões, caiado de branco e circundado por um amplo adro murado, ao qual se acede através de escadarias laterais encimadas por pórticos decorados. O interior da capela é também singelo, destacando-se pinturas murais, parcialmente encobertas pelo altar-mor, onde se encontra, ao centro, a imagem da Virgem Maria com o Menino, e, no lado esquerdo, uma imagem da Santa Padroeira.

 

As origens desta Ermida perdem-se na bruma dos tempos, mas o nome que partilha com a pequena serra em se encontra implantada, proveniente da palavra latina Ara Coelis, altar do céu, deixam antever a sua antiguidade, remontando, pelo menos, à época romana, como comprova o espólio arqueológico recolhido no local. Dada a sua localização estratégica e vista privilegiada, calcula-se que tenha constituído um ponto de vigia nos períodos romano e islâmico.

 

Dada a ausência de fontes documentais que o comprovem, estima-se que esta capela tenha sido fundada no final do século XVI, no contexto da expansão do culto mariano, e que tenha constituído um local importante de romagem no âmbito de um percurso de devoção Mariana no sul de Portugal. Este incluía outras capelas conhecidas como as suas ‘seis irmãs’, passíveis de avistar deste local: a de Nossa Senhora dos Remédios (Alcaria, Mértola); a da Cola (Ourique), a de Nossa Senhora do Castelo (Aljustrel), a de Nossa Senhora de Guadalupe (Serpa), a de Nossa Senhora da Saúde (Castro Marim), e a de Nossa Senhora da Piedade (Loulé).

 

Atualmente, esta ermida/capela assume-se como um dos principais santuários marianos do Alentejo, continuando a atrair devotos e peregrinos ao longo do ano, particularmente durante a Festa anual em honra da Santa Padroeira, que se realiza no início de setembro, e em que a imagem é transportada em procissão ao redor do monte, para pedir um bom ano agrícola, cumprindo assim a tradição ancestral.

 

Não obstante tratar-se de um local remoto e isolado, continua a atrair um número considerável de visitantes e turistas. O singelo santuário, a beleza e a tranquilidade do lugar, a extraordinária paisagem que oferece, e ainda a riqueza da fauna autóctone, nomeadamente as aves estepárias, são algumas das razões que explicarão a popularidade da Senhora de Aracelis.

 

A Capela de Nossa Senhora de Aracelis contem alguns ex-votos, colocados à entrada do templo, em pequenos móveis ou em cima de cadeiras. Destacam-se, pela sua quantidade, as fotografias.

O ex-voto em apreço passará talvez despercebido a muitos dos que visitam este templo, por se encontrar pendurado por cima da porta da Capela, ficando por isso atrás de quem entra. A altura a que se encontra pendurado dificulta também a sua leitura ou contemplação.

 

 

Trata-se de um quadro que prima pela singeleza e pelo seu estilo naïf avant la lettre. Nele se encontra representada uma concorrida procissão que sai da Igreja Matriz de São Marcos da Ataboeira e se dirige monte acima, rumo à Capela de Nossa Senhora de Aracelis. O quadro oferece-nos uma vista bastante clara destes templos, bem como da organização e composição da procissão, com destaque para a imagem de Cristo Crucificado que encima o cortejo processional, o andor que transporta o Santo Padroeiro da aldeia, os membros do clero seguidos da população, as pessoas que, dispersas pelos campos, se ajoelham e oram, dirigindo o seu olhar para o topo da escarpa. Podemos ainda ver um céu carregado e, no cimo de colinas, dois moinhos de vento, onde era moído o trigo produzido na região, e a partir do qual se fazia o pão – principal alimento e meio de subsistência dos seus habitantes. Se a representação visual nos enquadra no espaço, a legenda situa-nos no tempo (19 de dezembro de 1790) e dá-nos conta da ação. A natureza do objeto – um ex-voto – é desde logo sinalizada pelas palavras iniciais da narrativa: “Milagre que fez…”.

 

Legenda do Ex-Voto:

“MILAGRE Q FES N. S. D’ARACELIS EM 19 D M D 1790 A OS HABITANTES DA FREG. D’ S. MARCOS E SEOS CONVEZINHOS, Q ATERRADOS E SECUNBIDOS COM GRANDE SECA, LEVAM EM PORCIÇÃO O GLORIOSO S. JOZE DA SUA IGREJA, A CAPELA DA MESMA SR.ª IMPLORANDO A SUA PROTECÇÃO COM TANTA FÉ, Q. SUBINDO A MONTANHA, DEREPENTE, A PARECESSEM DENÇAS NUVENS, DERRAMANDO TANTAS CHUVAS Q FERTELIZARÃO OS CAMPOS, TORNANDO ALEGRES, TANTOS AFLICTOS, Q FAZIÃO A D.ª PORCIÇÃO, Pª MEMORIA MANDOU RENOVAR ESTE QUADRO O R.º P. ANTONIO GUERREIRO EM 8 DEZbro D’ 1850.”

 

É inequívoca a relevância deste ex-voto, de cariz popular e de considerável antiguidade. Ele representa e condensa, de forma indelével, a essência da história, da identidade, e da condição do Alentejo e dos Alentejanos – uma região predominantemente agrícola e populações permanentemente à mercê dos caprichos de um clima agreste e imprevisível, caracterizado por grandes amplitudes térmicas, longos períodos de seca, trovoadas, chuvas intensas, ou temporais fora de época, tantas vezes responsáveis pela destruição das culturas, com as inevitáveis consequências – falta de trabalho, pobreza, fome, a tríade que constituiu um padrão recorrente das vidas das populações rurais do Alentejo ao longo da história, e sobre as quais escreveram, entre outros, José Cutileiro (1971) ou António Dias Lourenço (1997).

 

Este ex-voto assume particular interesse e significado numa época em que testemunhamos inequívocas alterações climáticas, particularmente na vasta região do Mediterrâneo, na qual o Alentejo e grande parte do território português se inserem, relembrando-nos a precariedade das nossas vidas como as conhecemos e da configuração e sustentabilidade das regiões que habitamos. Este ex-voto remete-nos igualmente para o milagre perene e intemporal da água, fonte de vida e da qual depende, hoje como ontem, a sobrevivência do nosso planeta.

 

 

Fontes:

Município de Castro Verde. Património Edificado – Ermida de Nossa Senhora de Aracelis – São Marcos da Atabueira.

Portal do Arqueólogo. Senhora de Aracelis. Direção Geral do Património Cultural.